O
filme da minha vida foi dirigido por Wim Wenders. E por causa dele, aos 16 anos
comecei a buscar todas as suas obras que existiam nas locadoras (sim, sou
desse tempo) e depois os que passaram em festivais a que tive acesso na
juventude. Entre os filmes de Wenders que assisti dos 16 aos 25 anos, até
finalizar minha obsessão com Hotel de um milhão de dólares, esteve Paris Texas.
Salvo
engano, tinha uns 18 anos quando o assisti, porque peguei na locadora e acho
que ainda era VHS... Não me lembro de ter revisto depois disso e tinha apenas
algumas lembranças enevoadas sobre o filme. Mas duas eram bem nítidas: Se tratava
de uma história de amor e a Natassja Kisnki era, junto com Isabella Roselini,
uma das mulheres mais lindas que já tinha visto no cinema.
Esse texto não será uma crítica do filme, mas sim uma visão pessoal com alguns toques de cinefilia que vem se intensificando graças às discussões semanais com meu grupo de cinema.
O primeiro ponto que deve ser comentado é, obviamente, a ficha técnica desse filme. Além da direção primorosa de Wenders, o mais americano dos diretores alemães, a fotografia de Robby Müller (que colaborara antes na trilogia de road movies), o argumento do dramaturgo e ator Sam Shepard e a trilha sonora de Ry Cooder foram elementos que levaram o filme a se tornar o sucesso de critica e público que foi na época e o mantém até hoje como um ícone para os cinéfilos. O deserto nunca foi tão belo quanto em Paris, Texas.
No
inicio do filme, Travis (Harry Dean Stanton) caminha sem destino, na paisagem
árida do Texas, o que já revela o quão vazio e desesperançado está o personagem. Ao ser “resgatado” pelo irmão Walt (Dean
Stockwell), ficamos sabendo que Travis está desaparecido há quatro anos, e que Walt
procurou por ele sem sucesso. Travis parece perdido, sem compreender o que está
acontecendo, apesar de aparentemente se lembrar do irmão, que tenta trazê-lo
para a realidade, conversando, fazendo perguntas sobre onde ele esteve nesses
anos e o que aconteceu, sem conseguir respostas. Após o “resgate”, Travis ainda
tenta retornar à sua caminhada em direção ao nada, para novamente ser trazido
pelo irmão de volta à realidade. Temos nessa introdução uma boa visão do
personagem, como alguém perdido, sem rumo e vazio, como o olhar de Richard Dean
Stanton consegue expressar sem que palavras sejam necessárias.
Estamos
em um road movie. Portanto, as cenas do carro em movimento, a paisagem vista da
janela e os diálogos entre os personagens enquanto viajam, tanto no primeiro
quanto no segundo ato, são amalgamados por Wenders de uma maneira absolutamente
orgânica e Travis, seguramente, está em seu habitat ao volante do carro
percorrendo o deserto.
Travis
parece desmemoriado e apenas pouco a
pouco vai abrindo espaço para lembranças que, vamos entender mais a frente,
oculta de si mesmo. Quando conhecemos a cidade que dá titulo ao filme por meio
da fotografia que Travis carrega, entendemos que sua “amnésia” é seletiva e a
perda de memória é na verdade uma defesa do personagem, por não ser capaz de
explicar, ou justificar, seu desaparecimento e o abandono do filho Hunter.
Novamente o olhar perdido e desalentado do personagem fala muito mais do que
qualquer diálogo seria capaz.
Mais
do que os diálogos, são os silêncios, gestos e olhares que nos ajudam a perceber
os personagens e suas dinâmicas como, por exemplo, a intimidade que havia entre
os dois irmãos no passado. E quando Walt, com impaciência, diz a Travis que
também é capaz de ficar em silêncio, apesar de por várias vezes insistir em
saber o que o fez desaparecer, temos a deixa para compreender que seu amor pelo
irmão é capaz até mesmo de calar a frustração, como ocorrerá no fim do primeiro
ato, quando Hunter parte com Travis.
Já
a relação de Travis com o filho vai sendo lentamente (re) construída nos dois
primeiros atos, e se revela de uma maneira muito doce quando Hunter se despede
de Walt dizendo boa noite, papai (good night daddy) e de Travis, com boa noite
Pai (good night Dad), ou ao explicar para o colega da escola que aquele homem
engraçado de terno e chapéu era “o irmão do papai e meu pai” e dizendo que tem
dois pais porque talvez tenha sorte (confesso que lágrimas apareceram nessa
cena). Vemos essa relação se fortalecendo e a intimidade se formando na viagem
de carro, quando a cor vermelha, característica de Travis, aparece nas roupas
de Hunter. Aliás, a cor vermelha,
claramente representando a paixão de Travis, começa timidamente no boné do
protagonista e vai tomando conta do filme até culminar na luz vermelha que o
cerca ao reencontrar Jane e compreender finalmente onde aquela paixão o levou.
Chegamos
então ao terceiro ato, quando somos apresentados a Jane, a mãe de Hunter, e aos motivos do
abandono do garoto e do desaparecimento de Travis.
Quando
Travis finalmente a encontra, somos levados a pensar que talvez o problema
tenha sido o comportamento dela, afinal, é ela que está em um local
“suspeito”, e Travis pergunta se sai com homens fora dali, o que ela nega.
Mas é fácil para o espectador imaginar: Jane é tão bonita e jovem, Travis tão
mais velho, não seria de se estranhar que fosse prostituta, por exemplo, e que
esse tivesse sido o motivo da separação e do abandono.
A verdadeira explicação só nos é dada nos 15 minutos finais: Um Travis extremamente violento, a depressão pós-parto, um relacionamento doentio, permeado por ciúmes e insegurança e uma Jane totalmente submetida, para quem a única saída foi, num momento de descuido, fugir como o filho e entregá-lo aos tios para que, sozinha, finalmente conseguisse realmente escapar da fúria de Travis.
Nesse ponto, um gosto amargo ficou na minha boca, com o qual ainda
estou lidando: a forma como essa história nos é narrada, pois Travis a conta em
terceira pessoa, escondido atrás de um espelho. Wenders conduz a cena de uma
forma que o espectador se compadeça dele. Apesar de fazer sentido que se esconda, pela culpa e pela vergonha que provavelmente o fizeram se perder e
começar a caminhar sem rumo, como o encontramos na primeira cena, a sensação
que tive foi de que Travis, ao entregar Hunter para Jane e ir novamente embora
como um cavaleiro solitário, encontra redenção, terminando o filme como um herói.
Quando Travis está contando para Jane a história “do casal que ele conheceu”, ela aos poucos vai reconhecendo, sejam as referências, seja a voz do ex-marido, temos o monólogo que revela todo o brilho do roteiro de Sam Shepard e a interpretação absolutamente entregue de Natassja Kinski, que vai demonstrando em seu rosto o medo, a tristeza e até mesmo o amor que um dia viveu nela:
Eu costumava fazer longos discursos para você. Eu costumava falar com você o tempo todo, embora estivesse sozinha. Passei meses conversando com você. Agora, não sei o que dizer. Era mais fácil quando eu apenas imaginei você. Até imaginei você falando comigo. Teríamos longas conversas ... nós dois. Era quase como se você estivesse lá. Eu pude te ouvir. Eu podia ver você, sentir seu cheiro. Eu podia ouvir sua voz. Às vezes, sua voz me acordava, no meio da noite, como se você estivesse no quarto comigo. Então, lentamente desapareceu. Eu não conseguia mais te imaginar. Tentei falar em voz alta com você como costumava fazer, mas não havia nada lá. Eu não podia mais te ouvir. Então, eu simplesmente desisti. Tudo parou. Você ... simplesmente desapareceu. Agora estou trabalhando aqui. Eu ouço sua voz o tempo todo. Todo homem tem sua voz.
Todo homem tem sua voz. Essa fala na boca de Jane, da forma como Wenders dirige a cena, soa como uma mulher que se recorda de um amor, e parece que esse amor nunca morreu. Mas para qualquer mulher que foi abusada, tratada com violência, que esteve numa relação tão abusiva quanto a de Travis e Jane, essa sensação de “todo homem tem sua voz” é apavorante.
Há
sentimentos contraditórios em mim: Como continuar a gostar tanto de um filme
que, num primeiro olhar, romantizaria uma relação abusiva? Fiquei um tempo
pensando nisso e fui procurar criticas que tivessem feito referência ao
assunto. Sem surpresas ao verificar que NENHUM crítico brasileiro que escreveu
sobe o filme falou sobre o relacionamento abusivo, nem superficialmente. Na
busca por criticas em inglês e francês, a mesma coisa. “Coincidentemente”, só
encontrei críticas escritas por homens... Nem mesmo em criticas atuais, dos
anos 2010 em diante, há referências. Paris Texas é um cult movie por excelência,
talvez por isso haja uma aura de reverência que impede a crítica de apontar
certas questões, mas para mim o gostinho amargo ficou. Jane tem seu filho de
volta e Travis volta para a estrada, mas esse não é um final feliz.
A resposta que encontro é, de certa maneira, perdoar Wenders e Shepard por terem criado Travis como um personagem que, por décadas, tem sido visto como o cara que tentou consertar seus erros. Em 1984, fazia sentido.