domingo, 22 de agosto de 2021

Sobre Paris, Texas.

 



O filme da minha vida foi dirigido por Wim Wenders. E por causa dele, aos 16 anos comecei a buscar todas as suas obras que existiam nas locadoras (sim, sou desse tempo) e depois os que passaram em festivais a que tive acesso na juventude. Entre os filmes de Wenders que assisti dos 16 aos 25 anos, até finalizar minha obsessão com Hotel de um milhão de dólares, esteve Paris Texas.

Salvo engano, tinha uns 18 anos quando o assisti, porque peguei na locadora e acho que ainda era VHS... Não me lembro de ter revisto depois disso e tinha apenas algumas lembranças enevoadas sobre o filme. Mas duas eram bem nítidas: Se tratava de uma história de amor e a Natassja Kisnki era, junto com Isabella Roselini, uma das mulheres mais lindas que já tinha visto no cinema.

Esse texto não será uma crítica do filme, mas sim uma visão pessoal com alguns toques de cinefilia que vem se intensificando graças às discussões semanais com meu grupo de cinema. 

O primeiro ponto que deve ser comentado é, obviamente, a ficha técnica desse filme. Além da direção primorosa de Wenders, o mais americano dos diretores alemães, a fotografia de Robby Müller (que colaborara antes na trilogia de road movies), o argumento do dramaturgo e ator Sam Shepard e a trilha sonora de Ry Cooder foram  elementos que levaram o filme a se tornar o sucesso de critica e público que foi na época e o mantém até hoje como um ícone para os cinéfilos. O deserto nunca foi tão belo quanto em Paris, Texas.

No inicio do filme, Travis (Harry Dean Stanton) caminha sem destino, na paisagem árida do Texas, o que já revela o quão vazio e desesperançado está o personagem.  Ao ser “resgatado” pelo irmão Walt (Dean Stockwell), ficamos sabendo que Travis está desaparecido há quatro anos, e que Walt procurou por ele sem sucesso. Travis parece perdido, sem compreender o que está acontecendo, apesar de aparentemente se lembrar do irmão, que tenta trazê-lo para a realidade, conversando, fazendo perguntas sobre onde ele esteve nesses anos e o que aconteceu, sem conseguir respostas. Após o “resgate”, Travis ainda tenta retornar à sua caminhada em direção ao nada, para novamente ser trazido pelo irmão de volta à realidade. Temos nessa introdução uma boa visão do personagem, como alguém perdido, sem rumo e vazio, como o olhar de Richard Dean Stanton consegue expressar sem que palavras sejam necessárias.

Estamos em um road movie. Portanto, as cenas do carro em movimento, a paisagem vista da janela e os diálogos entre os personagens enquanto viajam, tanto no primeiro quanto no segundo ato, são amalgamados por Wenders de uma maneira absolutamente orgânica e Travis, seguramente, está em seu habitat ao volante do carro percorrendo o deserto.

Travis parece desmemoriado e apenas pouco a pouco vai abrindo espaço para lembranças que, vamos entender mais a frente, oculta de si mesmo. Quando conhecemos a cidade que dá titulo ao filme por meio da fotografia que Travis carrega, entendemos que sua “amnésia” é seletiva e a perda de memória é na verdade uma defesa do personagem, por não ser capaz de explicar, ou justificar, seu desaparecimento e o abandono do filho Hunter. Novamente o olhar perdido e desalentado do personagem fala muito mais do que qualquer diálogo seria capaz.

Mais do que os diálogos, são os silêncios, gestos e olhares que nos ajudam a perceber os personagens e suas dinâmicas como, por exemplo, a intimidade que havia entre os dois irmãos no passado. E quando Walt, com impaciência, diz a Travis que também é capaz de ficar em silêncio, apesar de por várias vezes insistir em saber o que o fez desaparecer, temos a deixa para compreender que seu amor pelo irmão é capaz até mesmo de calar a frustração, como ocorrerá no fim do primeiro ato, quando Hunter parte com Travis.

Já a relação de Travis com o filho vai sendo lentamente (re) construída nos dois primeiros atos, e se revela de uma maneira muito doce quando Hunter se despede de Walt dizendo boa noite, papai (good night daddy) e de Travis, com boa noite Pai (good night Dad), ou ao explicar para o colega da escola que aquele homem engraçado de terno e chapéu era “o irmão do papai e meu pai” e dizendo que tem dois pais porque talvez tenha sorte (confesso que lágrimas apareceram nessa cena). Vemos essa relação se fortalecendo e a intimidade se formando na viagem de carro, quando a cor vermelha, característica de Travis, aparece nas roupas de Hunter.  Aliás, a cor vermelha, claramente representando a paixão de Travis, começa timidamente no boné do protagonista e vai tomando conta do filme até culminar na luz vermelha que o cerca ao reencontrar Jane e compreender finalmente onde aquela paixão o levou.

Chegamos então ao terceiro ato, quando somos apresentados a Jane, a mãe de Hunter, e aos motivos do abandono do garoto e do desaparecimento de Travis.

Quando Travis finalmente a encontra, somos levados a pensar que talvez o problema tenha sido o comportamento dela, afinal, é ela que está em um local “suspeito”, e Travis pergunta se sai com homens fora dali, o que ela nega. Mas é fácil para o espectador imaginar: Jane é tão bonita e jovem, Travis tão mais velho, não seria de se estranhar que fosse prostituta, por exemplo, e que esse tivesse sido o motivo da separação e do abandono.

A verdadeira explicação só nos é dada nos 15 minutos finais: Um Travis extremamente violento, a depressão pós-parto, um relacionamento doentio, permeado por ciúmes e insegurança e uma Jane totalmente submetida, para quem a única saída foi, num momento de descuido, fugir como o filho e entregá-lo aos tios para que, sozinha, finalmente conseguisse realmente escapar da fúria de Travis. 

Nesse ponto, um gosto amargo ficou na minha boca, com o qual ainda estou lidando: a forma como essa história nos é narrada, pois Travis a conta em terceira pessoa, escondido atrás de um espelho. Wenders conduz a cena de uma forma que o espectador se compadeça dele. Apesar de fazer sentido que se esconda, pela culpa e pela vergonha que provavelmente o fizeram se perder e começar a caminhar sem rumo, como o encontramos na primeira cena, a sensação que tive foi de que Travis, ao entregar Hunter para Jane e ir novamente embora como um cavaleiro solitário, encontra redenção, terminando o filme como um herói.

Quando Travis está contando para Jane a história “do casal que ele conheceu”, ela aos poucos vai reconhecendo, sejam as referências, seja a voz do ex-marido, temos o monólogo que revela todo o brilho do roteiro de Sam Shepard e a interpretação absolutamente entregue de Natassja Kinski, que vai demonstrando em seu rosto o medo, a tristeza e até mesmo o amor que um dia viveu nela: 

Eu costumava fazer longos discursos para você. Eu costumava falar com você o tempo todo, embora estivesse sozinha. Passei meses conversando com você. Agora, não sei o que dizer. Era mais fácil quando eu apenas imaginei você. Até imaginei você falando comigo. Teríamos longas conversas ... nós dois. Era quase como se você estivesse lá. Eu pude te ouvir. Eu podia ver você, sentir seu cheiro. Eu podia ouvir sua voz. Às vezes, sua voz me acordava, no meio da noite, como se você estivesse no  quarto comigo. Então, lentamente desapareceu. Eu não conseguia mais te imaginar. Tentei falar em voz alta com você como costumava fazer, mas não havia nada lá. Eu não podia mais  te ouvir. Então, eu simplesmente desisti. Tudo parou. Você ... simplesmente desapareceu. Agora estou trabalhando aqui. Eu ouço sua voz o tempo todo. Todo homem tem sua voz.

Todo homem tem sua voz. Essa fala na boca de Jane, da forma como Wenders dirige a cena, soa como uma mulher que se recorda de um amor, e parece que esse amor nunca morreu. Mas para qualquer mulher que foi abusada, tratada com violência, que esteve numa relação tão abusiva quanto a de Travis e Jane, essa sensação de “todo homem tem sua voz” é apavorante.

Há sentimentos contraditórios em mim: Como continuar a gostar tanto de um filme que, num primeiro olhar, romantizaria uma relação abusiva? Fiquei um tempo pensando nisso e fui procurar criticas que tivessem feito referência ao assunto. Sem surpresas ao verificar que NENHUM crítico brasileiro que escreveu sobe o filme falou sobre o relacionamento abusivo, nem superficialmente. Na busca por criticas em inglês e francês, a mesma coisa. “Coincidentemente”, só encontrei críticas escritas por homens... Nem mesmo em criticas atuais, dos anos 2010 em diante, há referências. Paris Texas é um cult movie por excelência, talvez por isso haja uma aura de reverência que impede a crítica de apontar certas questões, mas para mim o gostinho amargo ficou. Jane tem seu filho de volta e Travis volta para a estrada, mas esse não é um final feliz.

A resposta que encontro é, de certa maneira, perdoar Wenders e Shepard por terem criado Travis como um personagem que, por décadas, tem sido visto como o cara que tentou consertar seus erros. Em 1984, fazia sentido.

quinta-feira, 15 de abril de 2021

A Metamorfose dos Pássaros

 


A Metamorfose dos Pássaros (2020 - Portugal)

Direção e Roteiro: Catarina Vasconcelos

Elenco: Manual Rosa, João Móra, Ana Vasconcelos, Henrique Vasconcelos, Inês Campos, Catarina Vasconcelos


A primeira sensação que tive assistindo à Metamorfose dos pássaros é que o filme deveria fazer parte de alguma exposição permanente no Metropolitan Museum, numa tela bem grande, passando em looping, porque cada cena é uma pintura. Confesso que fiquei curiosa para saber se Catarina Vasconcelos e seu diretor de fotografia, Paulo Menezes, construíram aquelas composições, em especial as naturezas mortas e paisagens impressionistas do primeiro ato, baseadas em pinturas já existentes, porque me sentia admirando as paredes de algum dos tantos museus que já visitei. A diretora, em uma de suas entrevistas, confirmou minhas suspeitas: “Todo este lado que vem mais das artes plásticas foi muito importante e o filme não podia ter sido construído noutro sítio. Foram as soluções que encontrei para dar resposta a coisas que eu sentia”.

Os quadros que acompanham Beatriz e sua vida com os filhos, apesar de claramente terem as cores do passado, com seus tons terrosos, são quentes, acolhedores. Beatriz é a natureza, e mesmo sendo retratada com a composição das naturezas mortas (e isso não é desrespeitoso, pois já sabemos que se trata da história dessa mãe que se foi), Beatriz continua viva e presente até o minuto final.

Já as telas que pertencem a Henrique, ainda que igualmente belas, mantém o tom cinza azulado do mar e a melancolia que é impossível dissociar daquela vida distante do calor da amada. “Os marinheiros miram aquela linha que separa o mar do firmamento, pois se lembram que lá estão todos aqueles que amamos”

E o que dizer da memorável passagem depois da cena no rio, quando as pinturas que acompanharam Beatriz e Henrique vão dando lugar a outras telas, mais contemporâneas? Ali, na cena dos fantasmas no bosque, prendi a respiração, e começaram as lágrimas, que só pararam depois dos acordes finais da Sonata de Schubert.

“Os mortos não sabem que estão mortos. A morte é uma questão dos vivos. Ainda hoje não me lembro do dia, porque os dias onde algo tão grande acontece, como a morte de uma mãe, nunca se tornam memórias, eles ficam para sempre presos em nós, como sinais que nascem na pele para nunca mais sair, são demasiado dolorosos para habitar nosso cérebro, por isso os mantemos na pele.”

Ainda teremos as pinturas que acompanharão Jacinto e Catarina, a partir da tela em branco que inicia a relação de pai e filha (que imagem, meus amigos, que imagem!), às vezes minimalistas como os olhos no espelho, outras vezes grandiosas como as montanhas, até chegar à composição final, o encontro definitivo do mar e da terra no pequeno barco. “Catarina vai ser bonito ver-te voar”

E se não bastasse a poesia imagética construída durante todo o filme, há também a poesia das palavras. A história de amor contada através das cartas que ninguém leu. A história da mãe que era árvore e em cujos ramos os filhos balançavam. A história dos cavalos marinhos, que trazem em si, como as mães, todas as memórias do mundo. A história do filho que sofria o terror dos colonizados e que vivia a falta de oxigênio “no país e nas pátrias imaginárias onde tudo tinha o nome daquele homem que sufocava aquilo que tocava”. O mesmo filho que se olhava no espelho e não se via a si, mas ao pó, e que por fim entendeu que o pó das molduras era a passagem do tempo e talvez o pó não tivesse sido em vão. A história da filha que não queria repetir a mesma sina das tomadas, fêmeas, que estavam presas às paredes da casa sem poder se mexer, e de quem dependia a ligação de tudo que importava, enquanto os plugues,machos, estavam livres para ir aonde queriam. A história dos filhos que, quando a mãe deixou de balançá-los em seus ramos, caíram todos no chão, sem saber como se levantar. “Eu nunca esquecerei como era ver o mundo empoleirado em seus braços”

Catarina Vasconcelos constrói uma afinada sinfonia de imagens, sons e palavras para falar sobre luto, amor, família, mãe, liberdade, a passagem do tempo e, até mesmo, sobre Salazar.

Há filmes que nos tocam pelo roteiro, histórias que conversam intimamente com nossas emoções. Outros porque os diretores são hábeis o suficiente para provocar essas sensações mesmo que o espectador não entenda como aquelas lágrimas chegaram ali.

E há aqueles que são beleza em estado puro. Esse é o caso da Metamorfose dos Pássaros. Tanta beleza que chega a doer.