quinta-feira, 28 de junho de 2007

O menino palhaço

No último dia 21, o Jaime, meu irmão um pouco mais novo, completou 30 anos. Nosso pai queria fazer um cartão especial pra ele e pediu que eu escrevesse alguma coisa. Comecei a pensar nele quando era pequenino,  lembrar de tudo o que ele aprontava, e percebi que meu irmão sempre foi um palhaço. Daí nasceu esse texto. Uma homenagem ao meu pequeno "limãozinho"

Menino Palhaço

Às vezes acho que ele já nasceu palhaço... Pelo menos carinha de palhaço ele já tinha! Como gostava de fazer caretas!!! E o que dizer da mania que tinha de molhar as visitas toda vez que alguém ia fazer o favor de trocar a fralda dele? Vai dizer que aquilo não era palhaçada??!! Sem contar o hábito de se lambrecar: tudo que ele encontrava pela frente virava maquiagem! Melado, terra, lama, frutas, o quer que fosse ele dava um jeito de passar na cara... pra ficar ainda mais palhaço ( conta a lenda que até em coisas menos apresentáveis- e menos cheirosas- ele também enfiava aquele dedinho gordinho...).

Ele não era um garotinho muito parecido com os outros, talvez porque sua alma já fosse artista, e vamos combinar, artistas não umas gentes muito normais! Pois é, por não ser um menino muito normal, ele não jogava futebol, gostava mesmo era da tal ginástica olímpica, porque lá podia fazer mais palhaçadas, como ficar dando estrelinhas, cambalhotas, mortais quádruplos com pés nas costas, essas coisas complicadas (no fundo ele sabia o quanto aquelas coisas seriam úteis no seu futuro como palhaço...).

Nas horas vagas, enquanto uns ficavam brincando com os carrinhos de controle remoto, ele desmontava os seus, espalhava as pecinhas por todo lado, e depois montava tudo de novo. A diversão dele era descobrir como as coisas funcionavam (se bem que nem sempre ele conseguisse fazê-las voltar a funcionar, e sempre sobrava uma molinha que ele não tinha idéia de onde tinha saído!). Aquele aprendizado um dia também seria útil na sua vida de palhaço (porque palhaços também fazem engenhocas, ou você não sabia?).

Nessa mesma época ele resolveu que queria ganhar um dinheirinho. Ao contrário dos outros meninos - que iam lavar carros, entregar jornal - ele foi fazer teatro de bonecos (tô dizendo que não era muito normal!). E o melhor é que fez sucesso! Todo mundo dizia que aquele menino tinha futuro!

Então ele foi crescendo, crescendo, e um belo dia decidiu que não queria mais ser artista. Começou a achar aquilo tudo muito chato, e morria de vergonha quando a mãe e o pai pintavam a cara pra fazer as palhaçadas deles. Parecia que ia fugir pra sempre do mundo dos palhaços.

Mas felizmente foi uma fase que durou pouco, porque um anjinho de asa quebrada (protetor dos meninos que gostam de palhaçadas), soprou no ouvido dele dizendo que era pra parar com aquilo, que quando a gente tem um destino, não tem nada que possa nos afastar. E o destino dele era fazer as pessoas felizes.

Ai foi estudar na escola de artistas sérios (se é que artista pode ser gente séria). E como tudo o que ele sempre fez na vida, ficou muito bom na arte que escolheu.

(Aqui vamos fazer um parêntese para contar um segredo. Ser bom nas coisas também é uma característica dele...Tudo o que o palhacinho resolve fazer, faz obsessivamente até ficar perfeito. E não sossega enquanto não for o melhor! Inclusive nos hobbies...Quando jogava RPG - um jogo de pessoas que no fundo querem é estar num palco- ele só sossegou quando foi mestre. Corria de kart - sonho infantil realizado quando ele já era grande- e queria bater todos os recordes, mas perdeu da Cecília, tadinho! No tal do X-Box, varava noites pra ser o melhor. No forró, as moças fazem fila pra dançar com ele. Agora ele arranjou um tal de paintball, que deixa um monte de marcas pelo corpo, derruba na lama, etc., mas ele já ganhou até titulo de Animal Player – vai saber que é isso...- e ainda vai chegar a jogar na liga profissional...de um negócio que as pessoas brincam de atirar bolinhas de tinta uma nas outras. É cada coisa que esse povo inventa!)

Enquanto estudava na escola dos artistas sérios, ele também ia aprendendo outras coisas em outras escolas menos sérias. Aprendeu a jogar bolinhas pra cima, se equilibrar numa perna compriiiiida, ficar de ponta-cabeça, usar coisinhas coloridas no rosto, inclusive uma bolinha vermelha na ponta do nariz (coisas muito úteis pra um palhaço).

Quando terminou a escola, todo mundo pôde ver que ele era muito bom, um artista sério. Que era capaz de ficar pendurado de cabeça pra baixo no meio da cena e emocionar com suas expressões. Que criava texto do nada, e o texto fluía. Aprendeu muito na escola dos artistas sérios, e saiu de lá ator.

Mas o que nem todo mundo sabia é que a personalidade do palhaço também estava pronta.

E não é que o menino palhaço era bom naquilo mesmo?!?!??! Engraçado, tremendamente engraçado. Capaz de arrancar as gargalhadas mais gostosas de adultos e crianças. Começava a falar diferente e fazia a gente rir. Jogava as bolinhas pra cima, andava na perna comprida, colocava a bolinha vermelha e transformava o mundo em um lugar mais legal.

O menino-palhaço cresceu, e hoje completa 30 anos. Não trabalha mais só para divertir as pessoas, porque descobriu uma nova paixão. E pra variar, ficou muito bom nela...

Mas a bolinha vermelha está guardada numa caixinha na gaveta, só esperando a hora em que vai saltar de lá e pousar no nariz do menino-palhaço. Que mesmo sem ela continua fazendo a gente feliz.

21/06/2007

Imagem: http://dykerama.uol.com.br/src/img/arq/originais/ef73c0996e2e8eic64c_palhaco2.jpg

terça-feira, 12 de junho de 2007

Contaminação

"Renda-se,
como eu me rendi.
Mergulhe no que você não conhece,
como eu mergulhei.
Não se preocupe em entender.
Viver ultrapassa todo o entendimento.”
(Clarice Lispector)


Estava pensando em contaminação. Em como podemos ser “contaminados” por alguém que mal conhecemos.
Todas as pessoas que encontramos nos deixam alguma marca, por menor que seja. O que certas vezes acontece é que algumas dessas pessoas deixam marcas indeléveis, e não conseguimos nem mesmo explicar o porquê.
Não estou falando de amigos, amores, familiares. Falo de pessoas que, em determinado momento das nossas vidas apareceram, por um breve instante (que pode ter sido um dia, ou uma semana), marcaram nosso coração e nunca mais conseguimos apagar a impressão deixada.
Pode ter sido pelo momento vivido, pela memória que aquele encontro traz, pelo cheiro que ficou, pelo gosto das lágrimas na boca... Muitas podem ser as razões.
Mas a verdade é que existem pessoas que nos contaminam. Deixam em nossa alma um rastro, uma marca, uma cicatriz...
Pode ter sido um amor de verão mal resolvido e, passados mais de 15 anos, ainda dói.
Pode ter sido uma noite num trem indo para Viena, antes do nascer do sol.
Pode ter sido um Carnaval em Salvador, com o sol ameaçando nascer...
Pode ter sido um encontro de duas línguas diferentes, dois mundos diferentes, e um mesmo desejo.
Pode ter sido uma noite de fantasia e vinho, guerreiro e princesa.
Tantas possibilidades, poucas explicações. Mas sentimentos não precisam de explicações.
Ainda que você tente racionalizar, não consegue entender como uma pessoa tão diferente de você, tão distante do seu universo, aquele alguém que apenas cruzou seu caminho por um belo e frágil momento, conseguiu deixar em seu coração tal impressão.
“Uma orquídea de fogo e lágrimas.”
E você se vê inundado por um sentimento desconhecido e ao mesmo tempo tão familiar. Pode sentir o desamparo e a dor do que não foi e poderia ter sido. Ou então a inexplicável sensação de ter sido sempre assim, daquela pessoa ter sempre feito parte da sua vida, parte de quem você foi...ou é.
É aí que você fecha os olhos, procurando resgatar cada um dos instantes passados, a poesia daqueles momentos, cada palavra, gesto, olhar, sensação. Você sabe que essas lembranças serão efêmeras e acredita que seus sentidos não serão capazes de preservar com nitidez todos os momentos vividos.
Mas de repente percebe que bastará a nota de uma música no ar, o gosto doce daquele café, o cheiro do mar em Ipanema, o toque na seda do vestido ou a visão daquele olhar para que tudo reacenda, todo o brilho volte e você possa agradecer ainda mais uma vez por ter vivido e por ter sido “contaminado” por alguém. E então entende que, naquele preciso momento, você amou.

Janaina Ferreira
Brasília, 20/03/2007

domingo, 10 de junho de 2007

Eros e Psique


Conta a lenda que dormia 
Uma Princesa encantada 
A quem só despertaria 
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado, 
Vencer o mal e o bem, 
Antes que, já libertado, 
Deixasse o caminho errado 
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida, 
Se espera, dormindo espera, 
Sonha em morte a sua vida, 
E orna-lhe a fronte esquecida, 
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado, 
Sem saber que intuito tem, 
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado, 
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino 
Ela dormindo encantada, 
Ele buscando-a sem tino 
Pelo processo divino 
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro 
Tudo pela estrada fora, 
E falso, ele vem seguro, 
E vencendo estrada e muro, 
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera, 
À cabeça, em maresia, 
Ergue a mão, e encontra hera, 
E vê que ele mesmo era 
A Princesa que dormia.



Fernando Pessoa

sábado, 9 de junho de 2007

Ainda sobre palavras

Continuando no tema das palavras, esse texto escrevi alguns meses atrás, depois de assistir À "Mais estranho do que a ficção", filme que recomendo veementemente ;-)!

Sobre "Mais Estranho que a Ficção"


"Minhas asas estão prontas para o vôo, Se pudesse, eu retrocederia Pois eu seria menos feliz Se permanecesse imerso no tempo vivo." Gerhard Scholem, Saudação do anjo


É curiosa a reação que temos com determinadas obras de arte, principalmente artes audiovisuais, quando elas vão além do papel tradicional de nos emocionar, impressionar, ou tão somente divertir. E perceber que cada pessoa tem uma reação diferente de acordo com suas vivências nos faz querer  ainda maisdividir aquela experiência com alguém.

Não sei se foi meu estado de espírito ontem que favorecia as reações que tive (não estava muito bem, estava com a "energia" meio baixa, down mesmo...), ou se realmente o filme é muito bom. Precisaria de uma outra opinião pra me ajudar a balizar as sensações.

O que importa é que no final das contas sai do cinema pensando, pensando muito, e gosto de filmes que me provocam esse tipo de reação. Acompanhar a trajetória do Harold Crick, aquele cara ultra-comum, com a vida regrada, medida, calculada, que de repente se vê envolvido na narração de sua própria vida - transformando-se em personagem daquela tragédia/comédia que se desenvolve além do que ele pode prever - me fez questionar a capacidade e o poder que temos de "escrever" nossa história. De fazer dela o que bem queremos e escolher qual o melhor final.

Ao mesmo tempo, me fez recordar um autor que me apresentaram (e do qual li apenas poucas páginas), que disse que a narrativa tem o poder de construir a história. Do que li, aprendi que os escritores, ou quem lida bem com as palavras, as pode utilizar pra construir sua própria história.

O que faço eu ao escrever sobre meus medos, anseios, vivências, senão exorcizar meus fantasmas e assim tentar construir pra mim uma nova história? Talvez tenha sido isso o que me impressionou no filme, o fato de Harold Crick - a partir do momento que percebe que sua vida esta sendo narrada e que sua morte é iminente - começar um processo que pode culminar com a mudança total de sua personagem. E como nós podemos ser capazes de fazer o mesmo e, mais importante,sem precisar ser impulsionados por um narrador dentro de nossa cabeça que pretende nos matar logo, logo...

Uns podem conseguir pela palavra escrita, apenas por ela mesma, ao colocar no papel sentimentos, desejos e sensações e , após vê-los materializados ali, na folha branca, perceber que estão "curados" ou "redimidos". Para outras pessoas passa pela consciência de seus atos e a modificação de seus comportamentos viciantes ou auto-destrutivos. De qualquer maneira que seja feita, pode significar a reconstrução da nossa própria "narrativa" e, por conseguinte, de nossa história.

Stranger than fiction... Talvez seja um dos títulos mais precisos que o cinema já criou. Mas você não vai precisar entender o porquê daquelas coisas acontecem com Harold Crick, pois sabe que as coisas que nos acontecem muitas vezes são bem mais "estranhas" do que a ficção...


"O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à l’ordre du jour — e esse dia é justamente o do juízo final." (Walter Benjamin)

JANAINA FERREIRA
BsB 13/02/2007

domingo, 3 de junho de 2007

A língua é minha pátria

Museu da Língua Portuguesa. São Paulo, junho de 2007.


Início da tarde de sábado, entro em uma sala de projeção, o Museu exibe um vídeo sobre as origens da língua. Narração da Fernanda Montenegro, uma pérola. Quando eu achava que iria continuar o vídeo, a tela sobe e nós somos convidados a entrar em um galpão, com pé-direito muito alto, e a sentar como em uma arena. Daí em diante, tudo é magia em forma de poesia. E prosa.


Vozes famosas vão penetrando em nossos ouvidos, dando som às palavras mais belas da língua portuguesa. Drummond, Camões, Bandeira. E também Monteiro Lobato, Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias, Olavo Bilac. E Chico, Caetano, Vinicius, Tom. Tantas palavras perfeitas, atuais, belas, emocionadas. Enquanto as vozes penetram na alma, imagens se formam no alto, como no céu de um planetário. Imagens acompanhando as letras, formando-se como se formam as palavras.


Ouvir todos aqueles textos e poemas da nossa língua, acompanhados das imagens, me emocionou de uma maneira surpreendente. Enquanto escutava as frases penetravam na minha alma e me davam a consciência de como em nossa língua os sentimentos podem se transformar em imagens claras. E aqueles sentimentos me inundavam,  transbordavam nas lágrimas que não conseguia conter, diante de tanta beleza.


As Canções do Exílio trouxeram de volta os sentimentos vividos ao estar longe de casa, da minha pátria. Se a língua é minha pátria, como diz Caetano, eu tenho pátria: a língua portuguesa, falada no Brasil, de preferência.


As visões do amor, de Camões e Drummond, uma seguida da outra, mas com um espaço de alguns séculos entre elas, pareciam ter sido escritas ao mesmo tempo, num mesmo momento.


E Graciliano Ramos, que teve que descrever a morte da Baleia... Eu fechava os olhos e via claramente a cena, a cachorrinha que corria num céu cheio de preás. E, novamente às lagrimas, pensei que até na descrição da morte de um cão a poesia era transbordante.


De repente uma voz infantil começa a explicar o que é a vida. Lembrei da minha infância, quando li aquelas palavras pela primeira vez:


"A vida, Senhor Visconde, é um pisca – pisca.
A gente nasce,isto é,começa a piscar.
Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu.
Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso.
É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais.[...]
A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso.
Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia.
Pisca e mama ;
pisca e anda ;
pisca e brinca ;
pisca e estuda ;
pisca e ama ;
pisca e cria filhos ;
pisca e geme os reumatismos ;
por fim pisca pela última vez e morre.
-E depois que morre – perguntou o Visconde.
- Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?"


A imensa sabedoria da boneca de pano criada por Monteiro Lobato sempre me acompanhou e a última frase desse trecho não consegui esquecer. A Emília foi a primeira heroina da minha vida,  nunca deixei de sonhar com as histórias da boneca criada pela mão de gênio de Monteiro Lobato, cujos livros foram meus maiores companheiros de infância.


Então entendi o porquê da minha emoção incontida: as palavras estão impregnadas na minha alma desde muito cedo e ali,  no Museu, ouvindo/sentindo aquela experiência sensorial, percebi o quanto sou privilegiada por conseguir transformar sentimentos em letras na minha pátria, a língua portuguesa.


Visite o Museu da Língua Portuguesa: http://www.estacaodaluz.org.br/


Janaina Ferreira
São Paulo, junho de 2007.

Clarice...

O fato é que tenho em minhas mãos um destino e, no entanto, não me sinto com o poder de livremente inventar. Sigo uma oculta linha fatal. Sou obrigada a procurar uma verdade que me ultrapassa.

(Clarice Lispector)