quinta-feira, 15 de abril de 2021

A Metamorfose dos Pássaros

 


A Metamorfose dos Pássaros (2020 - Portugal)

Direção e Roteiro: Catarina Vasconcelos

Elenco: Manual Rosa, João Móra, Ana Vasconcelos, Henrique Vasconcelos, Inês Campos, Catarina Vasconcelos


A primeira sensação que tive assistindo à Metamorfose dos pássaros é que o filme deveria fazer parte de alguma exposição permanente no Metropolitan Museum, numa tela bem grande, passando em looping, porque cada cena é uma pintura. Confesso que fiquei curiosa para saber se Catarina Vasconcelos e seu diretor de fotografia, Paulo Menezes, construíram aquelas composições, em especial as naturezas mortas e paisagens impressionistas do primeiro ato, baseadas em pinturas já existentes, porque me sentia admirando as paredes de algum dos tantos museus que já visitei. A diretora, em uma de suas entrevistas, confirmou minhas suspeitas: “Todo este lado que vem mais das artes plásticas foi muito importante e o filme não podia ter sido construído noutro sítio. Foram as soluções que encontrei para dar resposta a coisas que eu sentia”.

Os quadros que acompanham Beatriz e sua vida com os filhos, apesar de claramente terem as cores do passado, com seus tons terrosos, são quentes, acolhedores. Beatriz é a natureza, e mesmo sendo retratada com a composição das naturezas mortas (e isso não é desrespeitoso, pois já sabemos que se trata da história dessa mãe que se foi), Beatriz continua viva e presente até o minuto final.

Já as telas que pertencem a Henrique, ainda que igualmente belas, mantém o tom cinza azulado do mar e a melancolia que é impossível dissociar daquela vida distante do calor da amada. “Os marinheiros miram aquela linha que separa o mar do firmamento, pois se lembram que lá estão todos aqueles que amamos”

E o que dizer da memorável passagem depois da cena no rio, quando as pinturas que acompanharam Beatriz e Henrique vão dando lugar a outras telas, mais contemporâneas? Ali, na cena dos fantasmas no bosque, prendi a respiração, e começaram as lágrimas, que só pararam depois dos acordes finais da Sonata de Schubert.

“Os mortos não sabem que estão mortos. A morte é uma questão dos vivos. Ainda hoje não me lembro do dia, porque os dias onde algo tão grande acontece, como a morte de uma mãe, nunca se tornam memórias, eles ficam para sempre presos em nós, como sinais que nascem na pele para nunca mais sair, são demasiado dolorosos para habitar nosso cérebro, por isso os mantemos na pele.”

Ainda teremos as pinturas que acompanharão Jacinto e Catarina, a partir da tela em branco que inicia a relação de pai e filha (que imagem, meus amigos, que imagem!), às vezes minimalistas como os olhos no espelho, outras vezes grandiosas como as montanhas, até chegar à composição final, o encontro definitivo do mar e da terra no pequeno barco. “Catarina vai ser bonito ver-te voar”

E se não bastasse a poesia imagética construída durante todo o filme, há também a poesia das palavras. A história de amor contada através das cartas que ninguém leu. A história da mãe que era árvore e em cujos ramos os filhos balançavam. A história dos cavalos marinhos, que trazem em si, como as mães, todas as memórias do mundo. A história do filho que sofria o terror dos colonizados e que vivia a falta de oxigênio “no país e nas pátrias imaginárias onde tudo tinha o nome daquele homem que sufocava aquilo que tocava”. O mesmo filho que se olhava no espelho e não se via a si, mas ao pó, e que por fim entendeu que o pó das molduras era a passagem do tempo e talvez o pó não tivesse sido em vão. A história da filha que não queria repetir a mesma sina das tomadas, fêmeas, que estavam presas às paredes da casa sem poder se mexer, e de quem dependia a ligação de tudo que importava, enquanto os plugues,machos, estavam livres para ir aonde queriam. A história dos filhos que, quando a mãe deixou de balançá-los em seus ramos, caíram todos no chão, sem saber como se levantar. “Eu nunca esquecerei como era ver o mundo empoleirado em seus braços”

Catarina Vasconcelos constrói uma afinada sinfonia de imagens, sons e palavras para falar sobre luto, amor, família, mãe, liberdade, a passagem do tempo e, até mesmo, sobre Salazar.

Há filmes que nos tocam pelo roteiro, histórias que conversam intimamente com nossas emoções. Outros porque os diretores são hábeis o suficiente para provocar essas sensações mesmo que o espectador não entenda como aquelas lágrimas chegaram ali.

E há aqueles que são beleza em estado puro. Esse é o caso da Metamorfose dos Pássaros. Tanta beleza que chega a doer.