quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Relicário



Em Otranto, uma cidade do sul da Itália, existe a Catedral dos Mártires, uma igreja na qual estão expostos os crânios de 900 cristãos que tiveram suas cabeças cortadas pelos turcos durante a invasão da cidade no século XV, porque não aceitavam a conversão religiosa. Esses ossos foram preservados durante mais de 500 anos pela Igreja para que os fiéis não se esquecessem que aqueles cristãos morreram pela sua fé. Trata-se de um relicário muito poderoso, de grande importância para as pessoas que vivem naquele lugar e também cheio de significados, se pensarmos que os relicários (cristãos ou não) sempre foram utilizados para evitar que uma idéia, mensagem ou crença morresse ou se perdesse no tempo.

Existem outras igrejas e também outros locais que foram transformados em santuários ou memoriais - relicários gigantes - para preservar no tempo a martirização, a dor, a perda, o passado. Essa é uma idéia válida para que nós não nos esqueçamos de onde viemos e do que, por vezes, outras pessoas passaram para que nós chegássemos até aqui. Entendo a importância desses memoriais, dos relicários construídos para recordar o passado. Mas não acho que devamos abraçar essa idéia na nossa vida quotidiana.

Temos uma tendência a construir relicários para aqueles amores dos quais não conseguimos nos libertar, mesmo quando sabemos - ou entendemos - que o fim era a única possibilidade. Queremos guardar num pequeno quarto as lembranças doces, os olhares cúmplices, os sonhos compartilhados, realizados ou não. E guardamos também aquele desejo secreto, que escondemos até de nós mesmos: quem sabe um dia... E assim vamos construindo nosso próprio ossário, com fragmentos de uma vida que passou.

É isso que a maioria de nós costuma fazer com os ossos, com as lembranças dos relacionamentos passados, os sonhos, os planos traçados juntos. Trancamos num quarto e deixamos empoeirando, para ter a certeza de que se precisarmos eles estarão lá, para podermos olhar e lembrar-nos de como um dia fomos felizes.

A questão é que às vezes nos esquecemos que os ossos, as lembranças, também têm sua energia, que vai nos puxando, amarrando, levando para trás, nos conectando àquele relacionamento que acabou, àqueles momentos, àquela vida que não é mais a sua, aos sonhos que não são mais os seus, aos desejos que não se realizaram.

O mais recente blockbuster dos cinemas, "Inception", tem uma trama secundária que me interessou mais que a temática dos sonhos. O personagem de Leonardo di Caprio, Cobb, vive "assombrado" pela idéia/fantasma da esposa Mau, vivida por Marion Cotillard. Ela invade os sonhos não só de Cobb, mas também dos demais sonhadores, atrapalhando os planos do marido ao ponto de colocar em risco sua vida e a dos demais. Mau está morta, mas Cobb não consegue aceitar viver sem seu grande amor.

Em um determinado momento conhecemos o universo onírico de Cobb, todo formado pelas lembranças da vida dos dois, pelos momentos que ele não quer esquecer e que fazem com que se apegue cada vez mais ao passado, colocando em risco sua própria sanidade e, mais ainda, seu próprio eu, que não é mais capaz de sonhar. Só ao final é que consegue entender que a única saída para se encontrar de verdade é deixar a mulher partir, o que ele deixa claro ao dizer ao "fantasma": você é só uma sombra do que minha mulher foi, o melhor que eu consegui fazer, mas isso não é suficiente, não posso viver de uma sombra, preciso deixar você ir.

Porque nenhuma fantasia que se construa em cima das nossas lembranças vai ser tão satisfatória, nos trazer tanta felicidade quanto aquela realidade que sabemos que não tem volta. Mas muitas vezes não temos coragem de abrir mão das lembranças felizes, ficamos apegados àquele passado, imaginando como poderia ter sido ou se um dia ainda poderá ser. Fazemos como Cobb: criamos um mundo e colocamos o fantasma para habitar e de vez em quando vamos lá, no quarto dos ossos, e re-vivemos as lembranças, o "sonho", tentando resgatar as sensações que aquele amor, que não tem mais condições de existir, nos trazia. Os amores que passaram não são mais possíveis. Acabam e precisamos nos conscientizar disso, desapegar e aceitar o fim.

No final do filme Cobb tem a atitude extrema de colocar um ponto final naquele sofrimento, naquela ligação, ao matar "simbolicamente" Mau, pois seria a única maneira de buscar o caminho para sua redenção, a volta para casa, para dentro de si mesmo e para a realidade onde aquele amor não existe mais. O final do filme é aberto a interpretações várias e nem sei se o diretor tinha a intenção de dar esse tom à história de Cobb e Mau. Como cinema é sempre uma obra aberta, vou continuar com a minha visão ...

Voltar para casa é voltar para dentro de si mesmo, ser capaz de viver novamente sem o fantasma daquele amor, sem os ossos e a lembrança de algo que já terminou. Precisamos desocupar o quarto para que outros sonhos possam ser construídos, outras realidades vividas. Desapegar das lembranças para dar lugar a outras possibilidades, outros amores.

Temos que ser capazes de enterrar os ossos, enterrar profundamente. Não é nada fácil e para algumas pessoas isso tem que ser feito aos poucos, com cerimônia e luto. Os mortos não desejam e por isso mesmo permanecem. Mas precisamos ter consciência de que a primeira coisa é a vontade de enterrá-los. Porque a morte vem para tudo, tudo tem começo meio e fim, até mesmo aqueles amores que julgávamos eternos. Temos que aceitar as fases, as transições e os momentos, aceitar que as coisas existem enquanto tem que existir, e não enquanto queremos perpetuá-las.

"(...)O que você está fazendo?
Milhões de vasos
Sem nenhuma flor
O que você está fazendo?
Um relicário imenso desse amor(...)"
(Nando Reis)

Belo Horizonte, 26/08/2010

Imagem: http://www.salentopervoi.it

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